23/05/2008

O Medo


Em verdade temos medo. Nascemos no escuro.
As existências são poucas. Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto. E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios. Vadeamos.
Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas, doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor, este célebre sentimento,
E o amor faltou: chovia, ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo... Nevava.
O medo, com sua capa, nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti, meu companheiro moreno.
De nós, de vós, e de tudo. Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses. Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo, Vem ó terror das estradas,
Susto na noite, receio... De águas poluídas.
Muletas, do homem só.
Ajudai-nos, lentos poderes do Láudano.
Até a canção medrosa se parte, se transe e cala-se.
Faremos casas de medo, duros tijolos de medo,
Medrosos caules, repuxos, ruas só de medo, e calma.
E com asas de prudência com resplendores covardes,
Atingiremos o cimo de nossa cauta subida.
O medo com sua física, tanto produz: carcereiros,
Edifícios, escritores, este poema, outras vidas.
Tenhamos o maior pavor. Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os. Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente, recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes... Fiéis herdeiros do medo,
Eles povoam a cidade. Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas, dançando o baile do medo.

(Carlos Drummond de Andrade)

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